“Eu não tinha mais como subir num bloco e nadar rápido como a coisa mais importante da minha vida”, revela Joanna Maranhão

 “Eu não tinha mais como subir num bloco e nadar rápido como a coisa mais importante da minha vida”, revela Joanna Maranhão

Joanna Maranhão anunciou aposentadoria das piscinas – Crédito: Bernardo Dantas/DP

Joanna tinha apenas três anos quando caiu na água e deu suas primeiras braçadas. A mãe, Theresa, decidiu que a filha deveria aprender a nadar logo cedo. O ano era 1990 e a menina, que ia no colo dos pais para as aulas de natação no Clube Português, começava a traçar o seu destino como uma das principais medalhistas brasileiras neste esporte.
Em quase trinta anos de carreira, Joanna foi a atleta da natação feminina brasileira que teve o maior número de participações nas Olimpíadas. Ao todo, foram quatro jogos: Atenas, Pequim, Londres e Rio de Janeiro. Na Grécia, alcançou o quinto lugar na prova dos 400 metros medley, melhor colocação de uma nadadora brasileira em Olimpíadas, feito que ela considera um dos mais especiais da sua trajetória.

Crédito: Reprodução do Instagram

O Panamericano de 2015 também tem significado especial na memória da atleta. Em Toronto, ela superou a sua própria marca de 2004 quando chegou à final dos 400 metros medley. Há 11 anos Joanna vinha tentando melhorar seu tempo, mas nunca conseguia bater os 4min40s00 que lhe renderam o quinto lugar em Atenas. Após superar uma difícil fase tanto na sua vida pessoal, quanto na profissional, Joanna terminou a prova em 4min38s07.
A pernambucana, além do maior número de participações olímpicas da natação feminina do Brasil e de chegar à final de Atenas em 2004, é a maior recordista brasileira (27 recordes). Também é a nadadora com maior número de recordes brasileiros em vigor (40 recordes), a nadadora sul-americana com maior número de recordes continentais em vigor (7 recordes) e única nadadora da história campeã brasileira absoluta nos 4 estilos e medley.

Crédito: Reprodução do Instagram

Mas alcançar todos esses títulos custou também muito sofrimento à nadadora. O ano de 2006 foi o que Joanna classificou como o mais difícil da sua carreira. Iniciou um  processo de terapia, auto-conhecimento e enfrentamento de traumas que lhe acompanharam durante anos dentro e fora das piscinas. Pensou em desistir de nadar, mas continuou cumprindo contrato, treinando e competindo pelo Brasil afora, mesmo com um baixo rendimento, devido à instabilidade emocional. Precisou ouvir as críticas da imprensa, que a tratou como fracassada. Tudo isso aos 20 anos idade.
Em 2008, Joanna tomou a difícil decisão de denunciar o ex-treinador que lhe abusou sexualmente aos 9 anos. A violência causou sequelas na vida da atleta, que afirma nunca ter superado o que viveu, ainda tão pequena, nas mãos do agressor, que tinha a confiança de sua família. “A gente aprende a conviver, mas superar, não supera”, desabafa a pernambucana. Aos 31 anos e já consagrada como uma das maiores atletas na natação brasileira, Joanna anunciou sua aposentadoria. O anúncio veio em julho, através de uma publicação no seu Instagram. “E é chegada a hora de encerrar um ciclo de tantos anos. Por 17 primaveras defendi as cores do Brasil nos mais diversos campeonatos internacionais”, escreveu a atleta. Conversamos com ela sobre carreira, fases da vida e seus projetos para o futuro:
O que te levou a encerrar a carreira de nadadora?
A decisão não foi tomada do dia para a noite. É uma coisa que eu comecei a pensar há bastante tempo. O mais importante para mim, é que essa transição não fosse feita numa relação ruim com a natação, no momento em que eu não tivesse mais conseguindo melhorar o meu tempo. Eu estava numa fase muito boa, com perspectiva de melhora, poderia ir para Tóquio, caso eu quisesse, mas outras coisas começaram a fazer o meu coração mais forte. Eu sempre fui muito passional no que diz respeito à minha carreira e, sem programar, eu acabei engravidando, em abril. Quando você vê aquele resultado você automaticamente se torna mãe. Eu projetei toda a minha vida, eu teria meu filho em janeiro para depois decidir se eu voltaria a competir ou não. Só que depois de sete, oito semanas eu perdi o bebê. Todo esse processo e o quanto eu me transformei nesse período em que eu estava gerando um filho, me fizeram entender que tinha outras coisas na minha vida que faziam o meu coração bater mais forte e isso era a infância, a relação com a minha própria, com a das pessoas que passaram pela mesma situação que eu, que eu troco experiências todos os dias, as crianças do meu projeto e esse filho que não veio pro meu ventre, mas que me transformou e me fez entender que eu não tinha mais como subir num bloco e nadar rápido como a coisa mais importante da minha vida.

Crédito: Reprodução do Instagram

Quais são os seus novos projetos?
Essa transição de carreira, eu sou bacharel em Educação Física, estudando um pouco mais sobre gestão esportiva para ver até onde isso pode me levar porque eu quero me sentir útil. Eu quero seguir me sentindo útil para o esporte. Seja na borda da piscina, seja gerindo o que quer que seja, eu quero continuar sendo útil e retribuir de alguma maneira tudo o que o esporte trouxe para mim. Em menor escala eu já tenho feito isso com meu projeto, dando aula para 80 crianças da rede em Belo Horizonte, quero expandir isso para o Recife, que é minha própria cidade e sei que tem muitas crianças que também querem aprender a nadar. Eu tô iniciando esse processo, estão aparecendo oportunidades, eu tô vendo ainda como que financeiramente isso vai se dar da melhor maneira para mim porque o meu objetivo nunca foi e nunca vai ser ser rica. Meu objetivo é pagar as minhas contas de uma maneira moral, de uma maneira ética e seguir contribuindo com o esporte.
Quando você olha para trás e vê o tamanho do seu legado, qual a sensação?
Eu não penso tanto em legado porque eu penso que tudo que eu fiz dentro e fora da água não foi mais do que a minha obrigação. Eu fui uma pessoa que nasceu com talento pra nadar e eu procurei trabalhar esse talento da melhor maneira possível. Eu sempre trabalhei muito duro e tentei ser a pessoa que mais fazia força no treino, mais profissional possível. E acho que isso não foi mais do que a obrigação com aquilo que me foi dado naturalmente. E o que eu fiz fora da piscina em termo de lutar por aquilo que eu acreditava e me posicionar perante à CBDA, que era uma gestão extremamente corrupta e as pessoas viram isso no final de 2017 quando eles foram presos, é a extensão do que me foi ensinado em casa, então eu não fiz mais do que a minha obrigação. Essa palavra legado nada mais é do que a consequência daquilo que eu fui ensinada, do que eu lapidei e do que me foi dado naturalmente.

Crédito: Reprodução do Instagram

Já pensou em desistir das piscinas?
Várias vezes. Desde que eu iniciei o processo de terapia, em 2005, e comecei a mergulhar dentro da minha própria história, a compreender o que eu tinha passado, quem eu era de verdade porque até então a natação me inundava por inteiro e eu não precisava fazer esse mergulho para dentro de mim. Quando eu fui entender qual era a minha história e o que eu tinha passado, o que eu precisaria fazer, o que eu precisaria enfrentar para retomar o meu equilíbrio, por diversas vezes eu quis parar de nadar. Mas eu sempre tive uma mulher muito forte, referência, que para minha sorte, é minha própria mãe, que nunca me permitiu isso.
Qual o momento mais difícil na sua carreira?
Eu considero o ano de 2006 como o mais difícil da minha carreira porque foi quando eu, de fato, mergulhei na terapia e foi o início do processo de auto-conhecimento, de enfrentamento e de verbalização do que eu tinha passado e eu seguia sendo atleta, seguia tendo contrato e eu queria mais parar de nadar e eu não podia para de nadar. Foi um ano em que a temporada inteira eu não conseguia terminar uma semana de treino. Toda semana eu tinha alguma crise que eu ia embora para casa e ficava lá por 48 horas, não queria tomar banho, não queria sair do quarto. Foi um período muito crítico e eu nadava os campeonatos e ganhava dentro do Brasil, mas fazia tempos muito ruins e tinha também o posicionamento da imprensa de me chamar de fracassada. Eu era muito jovem, para lidar com aquilo com 20 anos foi complicado.

Crédito: Reprodução do Instagram

E o que lembra com maior carinho?
De tudo. Até desses momentos mais difíceis eu tenho um grande carinho porque eles foram a mola necessária para que eu não desistisse, para que continuasse e perseverasse nessa missão de desenvolver essa melhor versão de mim mesma. Desde pequena que eu tenho essa relação comigo mesma de ser sempre melhor do que eu era antes. E se não fossem esses momentos muito difíceis eu não teria perseverado nesse processo. Sem dúvidas o quinto lugar de Atenas foi muitíssimo especial, o Panamericano de 2015, quando eu finalmente consegui melhorar meu tempo de 400 metros medley depois de 11 anos. Mas eu tenho um carinho pela minha carreira como um todo. Hoje, na maturidade, até a temporada de 2006, que foi extremamente difícil, eu tenho um imenso carinho porque eu sei que foi aquele momento de escuridão que me fez buscar a luz.

Crédito: Record/Divulgação

Há 10 anos, você decidiu revelar para o Brasil ter sido vítima de abusos sexuais. Na época,  tinha dimensão da importância que aquilo ia significar para pessoas que sofreram o mesmo que você?
Eu não tinha ideia da proporção que isso ia tomar e nem aonde isso iria chegar. Quando eu trouxe a história à tona, em 2008, eu só queria falar sobre uma coisa que eu já tava calando há muitos anos e que de alguma maneira eu tava me sentindo pronta para isso. Mas você nunca está, de fato, pronta para as consequências das atitudes que você toma. Por mais racional que se seja sempre existe alguma coisa que vai te mexer um pouco e isso mexeu muito comigo porque eu não tava pronta e a consequência disso poderia ser trágica porque o crime já tinha prescrito e eu acabei me tornando ré porque eu fui processada por ele, mas quando você tá na sua verdade, tentando se encontrar consigo e pelos outros também, porque eu fui desenvolvendo essa empatia com outras pessoas ao longo do tempo, as coisas vão se encaixando. Lá atrás eu não tinha ideia, mas hoje eu tenho consciência da importância desse trabalho e que eu não sou proprietária dessa narrativa, eu sou uma multiplicadora. Mais uma que tá multiplicando e tá estendendo a mão e a gente vai fazendo essa corrente. Eu não sou mais do que nenhuma outra mulher. Eu sou mais uma.
Quando você se deu conta de que estava sofrendo abusos sexuais?
Eu não me dei conta naquele momento. Eu sabia que aquilo era uma experiência ruim, era doloroso pra mim, que me causava vergonha, mas eu não sabia exatamente o que era, então eu não sabia como me portar: dizer “para” ou “não bota a mão aí” ou contar para minha mãe porque a posição dele era de poder. Retraí isso no meu cérebro como maneira de me munir, de me proteger e acabei de inundando na natação por muitos e muitos anos. A consciência mesmo começou a vir na puberdade. Eu comecei a ver que tinha alguma coisa errada comigo, que eu tinha passado por uma experiência não muito legal e aí fui desenvolvendo Síndrome do Pânico, algumas posturas que minha mãe foi vendo que eu precisava de ajuda e aí foi dentro da terapia que eu tive a real consciência da gravidade da experiência que eu tinha vivido.

Crédito: Reprodução do Instagram

Esse desabafo ajudou a lidar com os efeitos desses abusos?
Sem sombra de dúvidas. Cada verbalização era um vômito muito doloroso. As primeiras vezes que falei na terapia sobre isso foram muito dolorosas, mas o tempo foi me ajudando a não sofrer o processo de vitimização. Cada vez que eu falo, me liberto e consigo auxiliar outras pessoas. Quem passa pelo o que eu passei, não supera, aprende a lidar com aquilo, aprende a viver com aquilo. É uma vigilância eterna e uma eterna busca pelo próprio equilíbrio.
Nas redes sociais, você tem um forte posicionamento político. Como figura pública e atleta admirada, qual a importância de expor suas opiniões?
Você se posicionar politicamente, de fato, mostra uma autenticidade, mas foge um pouco do que é esperado de um atleta, que as pessoas esperam que fale apenas de resultados e que ele seja apenas aquela marionete. Eu sempre gostei de pensar fora da caixinha. Me posicionar politicamente me trouxe alguns problemas, mas em outros abriu muitas portas para o diálogo e para o debate democrático. Eu tô aprendendo com isso também, inclusive com o outro que pensa diferente de mim
Também nas redes sociais, você costuma postar muitas fotos com a camisa do Sport Clube do Recife. Como é a sua relação com o futebol?
Eu tenho um amor e admiração muito grande pelo clube. Eu vejo muito dentro do cenário de ser um clube do Nordeste que está sempre lutando e incomodando times do sudeste, que a gente sabe que, em termos de futebol, dinheiro faz toda a diferença. Gosto muito das iniciativas que o Sport têm para outras modalidades, de não se acomodar somente em Pernambuco. Eu tô com o Sport em todos os momentos. Eu virei sócia do Sport quando a gente quase caiu para a série C.
Por Bettina Novaes
 

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